Coluna Trabalho Além da Barbárie, todas as quintas no Justificando
Por Reginaldo Melhado
Os juristas têm se esforçado em demonstrar tecnicamente a ocorrência da relação de emprego entre trabalhadores e empresas proprietárias de plataformas de serviços (como Uber, iFood etc.). Esse esforço de hermenêutica jurídica é elogiável, mas algo mais além desse modelo deve ser objeto de reflexão: a de categorias como mercadoria, trabalho assalariado e mais-valia em Karl Marx, e a revisão crítica do conceito de relação de emprego, forjado desde tempos imemoriais para definir o trabalho protegido pelo sistema jurídico.
Meios de produção digitais e plataformas digitais
Na velha e boa língua de Camões, o termo plataforma sugere uma área plana, elevada em relação ao nível do solo. No tempo de Machado, designava o espaço erguido ao lado da linha férrea, nas ferroviárias e estações de metrô, destinadas ao embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. No discurso contemporâneo, as plataformas tornaram-se ambientes informacionais com características semelhantes. São estruturas de interface de mercadorias e pessoas que, ademais de interação algorítmica, também se constituem como parte integrante dos meios de produção de mercadorias, com predominância para aquelas que se corporificam enquanto serviços. Essas infraestruturas digitais “moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (na definição de Thomas Poell, David B Nieborg e José Van Dijck, em Plataformização).
Contrato de emprego e subordinação
Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é falsificação ideológica do real. Ela não é elemento da relação substantiva ou ontologicamente considerada e sim mera característica externa. Via de regra, a subordinação é muito evidente e adiposa, mas em diversos casos mostra-se rarefeita ou quase cognitivamente inapreensível.
Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é o mesmo que imaginar que a água é em si mesma água por ser um líquido incolor, sem cheiro ou sabor (como aprendemos na escola, e nem isso parece correto, pois as propriedades da água podem fazê-la doce ou salgada, alcalina, ácida). Na realidade, evidentemente, a água é uma substância química cujas moléculas são constituídas por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio (H2O). Esses são os elementos da água, substantiva ou ontologicamente considerada. O que você vê são suas características externas, não o que ela materialmente é.
Com contrato de emprego ocorre algo semelhante. Você vê externamente certas características típicas (pessoalidade, trabalho não eventual, onerosidade e subordinação), mas isso não é a relação de emprego materialmente considerada. Nesse sentido, a subordinação como elemento da relação de trabalho a ser tutelada pelo sistema legal civilizatório é apenas um mito.
Reginaldo Melhado é membro da Associação Juízes para a Democracia. Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona (com revalidação pela USP). Professor da UEL. Juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina.
Fonte: https://www.justificando.com/2020/09/10/marx-a-mais-valia-eo-mito-da-subordinacao/ | Visitado em: 12/09/2020
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