Imagem: Marcelo Camargo / Agencia Brasil – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando
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Por José Antonio Correa Francisco
O mundo dos últimos 25 anos do Século XIX foi um mundo de vitoriosos e vítimas. Seu drama consistiu nas dificuldades não dos primeiros, mas primordialmente, dos últimos. (A Era do Capital, Eric J. Hobsbawm)
Sob a influência da ideologia neoliberal[1], em quase todos os países, e das escolhas políticas e econômicas da última década, no Brasil, em breve comemoraremos o retorno à barbárie[2]. Sugiro, desde logo, o dia 11 de novembro, como data comemorativa (“Dia da Barbárie”), em lembrança à entrada em vigor da denominada “Reforma Trabalhista” (Lei nº. 13.467/2017), ou ainda, o dia 13 de julho, data da publicação da referida “reforma”, o que for mais conveniente para o aquecimento dos ‘negócios’.
O direito do trabalho surge, no final do século XIX, como resultado histórico e político para regular e, assim, minorar, os efeitos devastadores da exploração capitalista: jornadas exaustivas, ambiente do trabalho insalubre, perigoso e penoso, altos índices de acidentes e mortes durante a jornada, ausência de proteção e limitação do trabalho de crianças, adolescentes e da mulher, bem como inexistência de padrões remuneratórios mínimos.
O resultado de mais de um século de lutas dos trabalhadores, em todo o mundo, foi a adoção universal de regras mínimas de proteção ao trabalho humano, reunidas a partir do final da Primeira Grande Guerra, no Tratado de Versalhes[3] e demais documentos posteriores.
O Brasil, do segundo quartel do século XIX, gradativa e apenas formalmente, partiu de regime híbrido de trabalho subordinado, em que coexistiam a escravidão, cujos efeitos econômicos e sociais são sentidos até hoje[4] e o trabalho “livre”, precário e informal, para chegar à Consolidação das Leis do Trabalho[5], a partir da década de 1940.
O complexo evolver político do Brasil República culminou na redemocratização, iniciada no final da década de 1970[6], cujo resultado jurídico posto é representado pela Constituição de 1988: os direitos e as garantias sociais ali inscritas representam, tão somente, a base civilizatória mínima de nosso povo, consequência da luta histórica de gerações de trabalhadores e trabalhadoras.
A dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, além de outros, são fundamentos[7] do Estado Democrático Brasileiro, que se consubstanciam na regra expressa na cabeça do art. 7º da Constituição Federal:
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”
Outra garantia fundamental da classe trabalhadora é a liberdade sindical, sem qualquer interferência estatal, segundo as regras expressadas no art. 8º da Constituição Federal.
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A inconstitucional[8] reforma trabalhista, porém, tenta interferir frontalmente nesses princípios e regras, oriundos da luta histórica da classe trabalhadora, como se fosse possível, em reforma legislativa infraconstitucional e episódica, modificar os fundamentos da República, como se fosse possível, em momento de crises econômicas, afastar a aplicação de mandamentos constitucionais[9] dotados de atributos de irrenunciabilidade e imutabilidade.
No presente momento, somos o epicentro do COVID-19, lamentando a perda de centenas de milhares de vidas. Ações estatais contraditórias têm sido insuficientes para garantir a sobrevivência digna da classe trabalhadora e da população em geral. À surpresa inicial dos sintomas do coronavírus e de suas formas de contágio, somou-se a negação[10] do sério problema epidemiológico e, por ausência de coordenação técnico-científica centralizada, pulverizaram-se as ações de enfrentamento, com as conhecidas consequências nefastas e catastróficas sentidas por todas as famílias, em todos os brasis.
A desigualdade social, sempre sentida na pele (negra, principalmente) da classe trabalhadora, escancarou-se: as políticas neoliberais monetárias adotadas desde antes do golpe[11] de 2016 e de austeridade fiscal[12] foram solene e materialmente ‘dizimadas’ pela realidade do quadro de calamidade pública[13], impondo-se, ao Congresso Nacional, a aprovação de medidas de vultosa liberação de gastos públicos.
A ideologia neoliberal, porém, “flexibilizou” ainda mais direitos sociais e trabalhistas[14], permitindo-se, entre outras barbaridades, a suspensão unilateral do contrato de trabalho e a redução do salário, principal (ou único) meio de sobrevivência da classe trabalhadora, por intermédio de acordo individual, sem a participação sindical, na maioria dos casos, em total afronta às garantias e direitos fundamentais, com a surpreendente e inesperada chancela[15] do Supremo Tribunal Federal.
A dignidade da pessoa humana, fundamento da República, ainda pode ser considerada norte jurídico para as relações de trabalho? Voltaremos todos, agora sob o manto[16] “verde e amarelo”, às condições existentes nos primórdios da Revolução Industrial, na Europa, ou ao tempo da escravidão negra, no Brasil?
Com a adoção irrefletida de todas as mudanças de “flexibilização” das relações jurídico-trabalhistas, não se percebeu qualquer modificação nos indicadores de emprego, mesmo antes da pandemia do COVID-19. Muitos economistas[17] alertaram que a geração de emprego não seria (e nunca foi ou será) consequência das regras jurídicas subjacentes às relações de trabalho, sejam elas mais ou menos protetivas, mas resultado direto do fortalecimento e aquecimento da economia.
A partir da constatação de que a tentativa de redução de garantias e direitos históricos da classe trabalhadora não resultou em melhorias dos níveis de emprego ou ocupação, mas o contrário;
Considerando, desde sempre, que o aumento de renda dos trabalhadores, segundo a nossa necessidade social contínua e histórica, possibilitaria acesso a direitos de cidadania[18], notadamente à educação, à cultura, à saúde, à alimentação, à moradia, ao saneamento básico, ao transporte e ao lazer, disposições constitucionais de melhoria social crescente (não-retrocesso social), ou seja, em outras palavras, aquecimento global da economia;
Responda a si mesmo: com essas normas de “flexibilização” e destruição de direitos fundamentais, a quem estamos garantindo dignidade?
Vigente o art. 5º, XXXV[19], da Constituição Federal, apesar de ataques covardes e mesquinhos por parte de grupos fascistas minoritários, o Poder Judiciário ainda detém o poder-dever de dar concretude à Constituição Federal, limite lógico, político, jurídico e social de nossa República.
José Antonio Correa Francisco, Juiz do Trabalho Substituto da 11ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Notas:
[1] Apesar de surgida teoricamente no final da década de 1930, as políticas neoliberais nada mais são do que nova roupagem do liberalismo capitalista e ganharam força após a crise do petróleo, da década de 1970; aplicada, pela primeira vez, no governo genocida de Pinochet, no Chile, a partir de 11 de setembro de 1973, e repercutida, mundialmente, nos governos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos EUA, nos anos 1980.
[2] Barbárie, na acepção histórica e do dicionarista (Houaiss), costumes grosseiros, estupidez, crueldade.
[3] A Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada em 1919, até hoje possui estrutura tripartite (empregados, empregadores e estado).
[4] Recomendo a leitura de “Racismo Estrutural (Feminismos Plurais)”, do professor, jurista e doutor Silvio de Almeida, 2019, São Paulo, Pólen.
[5] A legislação social esparsa brasileira se inicia em 1891, com a proibição do trabalho do menor de 12 anos, no Distrito Federal
[6] As greves dos trabalhadores metalúrgicos, no ABC Paulista, tiveram papel social, econômico e político relevantes para a redemocratização
[7] Art. 1º, III e IV, da Constituição Federal.
[8] Do ponto de vista acadêmico, não há dúvida da incompatibilidade e inconstitucionalidade da reforma trabalhista em relação ao sistema jurídico trabalhista, cuja norma fundamental é a norma mais favorável (não-retrocesso social), segundo o disposto no art. 7º, caput, da Constituição Federal, embora essa matéria esteja em discussão judicial, com divergentes decisões, tendo como exemplo a ADI nº. 5.766/DF.
[9] Entendo, acompanhando a melhor jurisprudência e doutrina, que os direitos e garantias do art. 7º da Constituição Federal são imantados pelo art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.
[10] Entre 25 de março e 30 de abril, enquanto havia Ministro da Saúde, as declarações do Presidente da República variaram de “gripezinha” ao “e daí”. Até hoje, porém, a preocupação do Poder Executivo com a sobrevivência econômica relativiza outras ações sanitárias (isolamento social) e de distribuição efetiva de renda (auxílio emergencial universal e de valores substanciais), que poderiam diminuir fortemente o número de vidas perdidas e possibilitar o reaquecimento das atividades econômicas com maior segurança e estabilidade.
[11] Em 31.8.2016, o Congresso Nacional afastou a presidenta Dilma Roussef, sem que houvesse qualquer crime de responsabilidade. http://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/559602-golpe-de-2016-e-o-maior-retrocesso-da-democracia-no-brasil-desde-1964 consulta em 20.8.2010, às 9h04 (AMT).
[12] Emenda Constitucional (EC) 95, de 15.12.2016
[13] No dia 7.5.2020, o Congresso Nacional aprovou o denominado “Orçamento de Guerra” (EC 106/2020).
[14] Medida Provisória (MP) 927 e MP 936
[15] ADI 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354
[16] No final de abril de 2020, a MP 905 caducou, a qual previa novas formas “flexibilizadas” de contratação de empregados
[17] https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/, consulta em 20.8.2020, às 9h31 (AMT)
[18] Art. 7º, IV, da Constituição Federal: salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”
[19] Art. 5º, XXXV, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.
Fonte: http://www.justificando.com/2020/09/04/a-era-da-barbarie-dignidade-de-qual-pessoa-humana/ | Visitado em: 06/09/2020
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